«Apelamos à ousadia para redefinir a profissão»
Em entrevista escrita, Paul Sinclair, presidente da Federação Internacional Farmacêutica (Fip), fala sobre sustentabilidade, integração, inovação tecnológica e humanização dos cuidados em farmácia comunitária como desafios e oportunidades determinantes do futuro do setor.
Texto de Carina Machado
A sustentabilidade tem sido um pilar central da sua liderança na FIP, especialmente através do programa "SustainabilityRx". De que modo pode essa visão ser aplicada às farmácias comunitárias em Portugal?
O programa “SustainabilityRx” da FIP é um plano de ação conjunto que visa garantir um futuro resiliente, justo e sustentável para as farmácias em todo o mundo. Baseia-se no 21.º Objetivo de Desenvolvimento da FIP, “Sustentabilidade na Farmácia”, e destaca a nossa responsabilidade na promoção da saúde e na proteção das bases que a sustentam: o planeta, as comunidades e a profissão. Apoia-se em três eixos principais. O primeiro é a sustentabilidade económica, essencial para que as farmácias prosperem e cumpram a sua missão. Isso exige sistemas viáveis a longo prazo, remuneração justa pelos serviços farmacêuticos, modelos de financiamento que garantam acesso universal e investimento na farmácia como peça-chave dos sistemas de saúde — exemplo disso é a remuneração pelos serviços de vacinação recentemente conquistada em Portugal. O segundo é a sustentabilidade ambiental, que está no centro da nossa missão. A farmácia tem um papel vital no combate às alterações climáticas, desde o desenvolvimento, fabrico, distribuição e descarte dos medicamentos até ao uso responsável de energia e recursos na prática diária. A FIP continuará a apoiar a ANF no avanço de práticas sustentáveis e na demonstração de como os farmacêuticos podem contribuir para a proteção ambiental. Por fim, a sustentabilidade social lembra que a farmácia é, antes de tudo, sobre as pessoas. O acesso a medicamentos e ao conhecimento farmacêutico deve ser equitativo, e as farmácias precisam continuar a ser uma ponte para melhores resultados em saúde, especialmente para grupos vulneráveis. Neste aspeto, as farmácias portuguesas já são um exemplo de proximidade, oferecendo serviços avançados que ligam a sustentabilidade social ao compromisso dos farmacêuticos com as suas comunidades.
A escassez de profissionais de saúde é um desafio crescente à sustentabilidade dos sistemas de saúde em todo o mundo. De que forma este cenário pode representar uma oportunidade para re- forçar o papel das farmácias e dos farmacêuticos comunitários?
Até 2030, estima-se uma escassez global de cerca de 11 milhões de profissionais de saúde. Para os farmacêuticos, este cenário representa uma oportunidade para ampliar o seu âmbito de atuação, aliviar a pressão sobre os cuidados primários e reforçar a colaboração interprofissional nos sistemas de saúde. A FIP, através do relatório "A Farmácia Comunitária em Perspetiva" (2021), demonstrou que os farmacêuticos comunitários estão a assumir funções cada vez mais diversificadas, para além da dispensa de medicamentos. Entre elas, incluem-se decisões clínicas relacionadas com terapêuticas, administração de vacinas, triagem de doenças, primeiros socorros e prestação de cuidados fora das instalações da farmácia. A colaboração interprofissional coloca os farmacêuticos lado a lado com médicos, enfermeiros e outros profissionais, promovendo cuidados centrados nas pessoas. Esta abordagem melhora a gestão terapêutica, combate a polifarmácia inadequada e apoia o tratamento de doenças crónicas, o uso racional de antimicrobianos e a farmacoterapia personalizada. Consideramos que os cuidados integrados, além de melhorar os resultados em saúde, reduzem custos e mitigam o esgotamento profissional. Para tal, a FIP defende a educação interprofissional, papéis bem definidos, a partilha de dados clínicos e políticas de apoio.
Por outro lado, e tendo em conta que as próprias farmácias comunitárias se debatem com uma crescente dificuldade em atrair e reter profissionais, que medidas considera a FIP prioritárias para inverter esta tendência?
A Secção de Farmácia Comunitária (CPS) da FIP abordou o desafio da atração e retenção de profissionais com a publicação, em 2023, de um relatório global sobre a sustentabilidade da força de trabalho e ambientes de prática positivos. Baseado também num inquérito a mais de 750 farmacêuticos, o relatório revelou que 62% dos profissionais de farmácia enfrentam burnout ou preocupações com a saúde mental, associados à escassez de recursos humanos, jornadas longas, desequilíbrio entre vida pessoal e profissional e pressões financeiras. A maioria referiu ainda a ausência de políticas formais para lidar com essas questões. O documento propõe seis medidas urgentes para garantir uma força de trabalho sus- tentável e tornar a farmácia comunitária uma carreira atrativa. Entre elas, destaca-se o desenvolvimento de soluções baseadas em evidência contínua, centradas no bem-estar dos profissionais e adaptadas à realidade das farmácias comunitárias; a criação de mecanismos de monitorização; e a inclusão do apoio à saúde mental em programas de expansão da prática. Salienta-se também a importância do reconhecimento e remuneração adequados, campanhas públicas sobre o papel do farmacêutico, e o investimento em investigação que permita enfrentar os desafios atuais com base numa visão de futuro mais otimista.
De que forma podem as farmácias comunitárias afirmar-se como parceiras essenciais nas políticas de saúde integradas?
A nova "Declaração de Política de Cuidados Farmacêuticos Centrados nas Pessoas", lançada pela FIP em setembro de 2025, reforça o papel das farmácias como prestadores de cuidados de primeira linha. Esta prática, orientada para resultados, exige que os farmacêuticos colaborem com os utentes e com outros profissionais de saúde para promover a saúde, prevenir doenças e garantir o uso seguro e racional dos medicamentos. A acessibilidade das farmácias e a continuidade dos cuidados prestados são elementos-chave nesta abordagem. Os farmacêuticos acompanham todo o ciclo do medicamento — desde a prescrição (quando legalmente autorizados), passando pela dispensa, administração e monitorização, até à manutenção de registos rigorosos e ao planeamento terapêutico individualizado. Este envolvimento coloca as farmácias no centro da jornada de saúde das pessoas, oferecendo cuidados próximos, seguros e eficazes.
Que condições são essenciais para que esse papel seja plenamente reconhecido?
Para além do acompanhamento clínico, as farmácias comunitárias desempenham um papel estratégico na saúde pública, prestando serviços como vacinação, gestão de doenças crónicas e testes rápidos point-of-care. Estas intervenções não só reforçam a capacidade do sistema de saúde, como melhoram a articulação com outros profissionais, através de acor- dos de prática colaborativa. No entanto, para que este papel seja efetivamente reconhecido e potencia- do, é fundamental que os governos integrem as farmácias nas estruturas nacionais de saúde. Isso implica garantir o acesso seguro aos dados dos pacientes e assegurar uma remuneração justa pelos serviços prestados.
Quais são as principais mais-valias das farmácias para os sistemas de saúde que continuam subaproveitadas?
Segundo o "Global Situation Report on Pharmacy" (GSRP), os farmacêuticos são frequentemente o primeiro e mais regular ponto de contacto das pessoas com o sistema de saúde. As farmácias são visitadas duas vezes mais do que os consultórios médicos, e mais ainda no caso de pessoas com doenças crónicas, o que as posiciona como pontos privilegiados de acesso a cuidados primários. Apesar disso, muitas das suas valências continuam subutilizadas. Em áreas como o uso seguro dos medicamentos, por exemplo, serviços de otimização terapêutica, reconciliação medicamentosa, programas de adesão e aconselhamento têm demonstrado eficácia na redução de erros de medicação e reinternamentos hospitalares. Contudo, o seu impacto é limitado em contextos onde o papel dos farmacêuticos permanece confinado à dispensa de medicamentos. Na gestão de doenças crónicas, como a diabetes ou a hipertensão, diversos estudos demonstram que a intervenção dos farmacêuticos pode melhorar significativamente os indicadores clínicos. Ainda assim, a integração formal desses serviços nos cuidados primários é muitas vezes negligenciada pelos decisores políticos. Também os testes rápidos, já utilizados em países como a Austrália ou os Emirados Árabes Unidos para rastreio de infeções respiratórias ou cancro colorretal, permanecem subaproveitados noutros contextos devido a barreiras regulatórias e ausência de financiamento. O mesmo se verifica na administração de vacinas, com exemplos positivos como a Suíça, onde os farmacêuticos contribuem diretamente para o aumento da cobertura vacinal, mas que contrastam com muitos países onde estas competências continuam legalmente vedadas. Na área da promoção da saúde, as farmácias demonstraram impacto em serviços como a cessação tabágica, gestão do peso ou uso racional de antibióticos. No entanto, a ausência de programas estruturados e o fraco reconhecimento institucional limitam o seu alcance. Situação semelhante ocorre com o apoio ao autocuidado e à gestão de situações clínicas ligeiras, apesar da elevada taxa de resolução e da boa relação custo-efetividade evidenciada em países como os Estados Unidos e a Austrália. Por fim, a telefarmácia e os serviços digitais têm vindo a revelar resultados promissores, com ensaios e programas-piloto a demonstrarem melhorias na adesão e nos resultados clínicos. Contudo, a falta de regulamentação, financiamento adequado e infraestruturas tecnológicas ainda impede a sua implementação generalizada.
Referiu amiúde a falta de reconhecimento por parte dos decisores políticos. Porque julga que continua a ser algo tão difícil de alcançar?
São várias as barreiras que continuam a limitar o reconhecimento do potencial das farmácias nos sistemas de saúde, apesar dos avanços registados. Uma das principais é a perceção estreita do papel do farmacêutico, muitas vezes reduzido à dispensa de medicamentos, em detrimento da sua formação e competência clínica. Esta visão restrita contribui para a subutilização dos seus conhecimentos e para a falta de reconhecimento formal como prestadores de cuidados de saúde primários. A este cenário somam-se obstáculos de ordem legal e regulamentar. Em muitos países, os farmacêuticos não estão autorizados a prestar serviços como vacinação, testes rápidos ou gestão de doenças crónicas. Além disso, a inexistência de mecanismos claros de reembolso e a classificação ambígua de “prestadores de nível intermédio” impedem que estes profissionais sejam compensados pelos serviços clínicos que efetivamente prestam, comprometendo a viabilidade dessas práticas. Muitos sistemas de saúde não reconhecem formalmente os farmacêuticos como prestadores, o que os impede de faturar os seus serviços. Isto desincentiva a adoção de práticas mais avançadas, mesmo quando existe formação para tal. Acresce ainda a falta de dados específicos e sistematizados sobre os impactos dos farmacêuticos nos resultados em saúde, o que torna o seu contributo invisível nas estatísticas e menos valorizado nas decisões políticas. Para ultrapassar estes desafios, é essencial avançar com reformas que reconheçam o papel clínico em evolução dos farmacêuticos. Tal passa pela criação de enquadramentos legais que permitam o exercício pleno das suas competências, garantindo remuneração adequada e reconhecimento formal das práticas avançadas. É igualmente necessário reforçar o investimento na formação e no desenvolvimento profissional contínuo, dotando os farmacêuticos de ferramentas para atuarem em áreas como a gestão de doenças crónicas, a saúde pública e os cuidados digitais. A articulação com outros profissionais de saúde, sobretudo nos cuidados primários e em contextos vulneráveis, deve ser incentivada para garantir uma resposta integrada e centrada nas pessoas. Por fim, a integração de tecnologias digitais e inteligência artificial será determinante para expandir o papel das farmácias. A colaboração entre setores, a partilha segura de dados e a interoperabilidade dos sistemas de informação são pilares essenciais para concretizar esse potencial.
A campanha "Think Health, Think Pharmacy", lançada pela FIP, e a colaboração com a OMS, parecem ser passos importantes para reforçar o reconhecimento da profissão. Quais são os próximos desenvolvimentos nesta área?
A FIP orgulha-se particularmente da campanha global "Think Health, Think Pharmacy", que tem como objetivo reforçar o reconhecimento da farmácia junto de governos, decisores políticos, reguladores e do público em geral. A mensagem é simples e poderosa: sempre que se pensa em saúde, deve pensar-se também na farmácia. Lançada em maio de 2024, durante a Assembleia Mundial da Saúde, esta campanha entra agora no seu segundo ano, com o compromisso renovado de expandir a sua visibilidade e impacto. Nos próximos meses, a campanha será reforçada com ações prioritárias lideradas pelo Bureau da FIP, que visam consolidar o papel da profissão como parceira essencial nas políticas de saúde globais. Paralelamente, e no âmbito do 83.º Congresso Mundial de Farmácia e Ciências Farmacêuticas, realizado recentemente em Copenhaga, a FIP apresentou uma das suas iniciativas mais ambiciosas: o "Global Situation Report on Pharmacy 2025". Este relatório oferece um retrato abrangente e atualizado da profissão farmacêutica a nível mundial, abordando áreas fundamentais como a força de trabalho, a formação e especialização, a expansão das competências clínicas, a digitalização dos serviços, a inovação, a mobilidade internacional, a equidade no acesso, a segurança do doente e a resiliência profissional. Com base nos dados mais recentes do "Global Pharmaceutical Observatory" e em contributos das organizações-membro e parceiros regionais, o GSRP não é apenas uma fonte de evidência robusta — é também uma ferramenta de advocacia estratégica. Permite demonstrar, com dados concretos, o impacto da farmácia nas prioridades globais em saúde.
A tecnologia e a inteligência artificial (IA) foram destacadas como motores de transformação no último Congresso da FIP. Como vê a sua integração na farmácia comunitária e o seu contributo para a humanização dos cuidados?
Representam uma oportunidade para transformar a prática e reforçar a centralidade do farmacêutico no cuidado à pessoa. Tarefas administrativas como a gestão de stocks, validação de prescrições ou monitorização da adesão terapêutica podem ser automatizadas, permitindo que os profissionais dediquem mais tempo à componente clínica e à relação com o utente. Ferramentas de apoio à decisão com base em IA contribuem ainda para uma atuação mais segura e personalizada, auxiliando na identificação de interações medicamentosas, riscos terapêuticos ou estratégias de tratamento. Soluções digitais como assistentes virtuais e chatbots ampliam o acesso à informação, sobretudo fora do horário habitual da farmácia, sem comprometer a qualidade ou a proximidade dos cui- dados. Em suma, longe de desumanizar o serviço, estas tecnologias libertam o farmacêutico para o que é insubstituível: escutar, acolher e cuidar com empatia. A IA pode, assim, contribuir para uma abordagem mais personalizada e inclusiva, respeitando as dimensões linguísticas, culturais e clínicas dos pacientes - e tornando-se, desse modo, uma aliada na humanização do cuidado farmacêutico. A FIP tem liderado esta transição, com iniciativas como o "AI Toolkit for Pharmacies", que oferece orientações práticas sobre a aplicação segura e ética da IA, disponível em várias línguas, e a mais recente “Declaração de Política sobre IA na Prática Farmacêutica” estabelece princípios globais para a sua adoção responsável.
Num cenário cada vez mais digital, como deverão evoluir as competências do farmacêutico comunitário?
A literacia digital e a capacidade de interpretar dados serão fundamentais para integrar com segurança os sistemas baseados em IA na prática clínica. Será também imprescindível o domínio de temas como a ética, a privacidade e a governação digital, uma vez que, mesmo com apoio tecnológico, a responsabilidade clínica continuará a ser do profissional. Contudo, as competências humanas manter-se-ão, e até ganharão importância acrescida. A empatia, a comunicação eficaz, o raciocínio clínico e a construção de confiança são qualidades que a tecnologia não substitui. Pelo contrário, num contexto cada vez mais automatizado, o toque humano será o principal diferencial da farmácia comunitária.
A ANF está a celebrar meio século de vida e de uma história profundamente relacionada com o modelo de farmácia comunitária português. Como avalia a evolução desse modelo e que perspetiva tem sobre o mesmo?
Antes de mais, em nome de toda a FIP, quero felicitar a ANF pelo seu 50º aniversário. O setor das farmácias comunitárias em Portugal tem tido uma trajetória única, marcada tanto por vitórias quanto por desafios, mas o vosso modelo atual coloca as necessidades e os cuidados com as pessoas acima de tudo. O foco e a dedicação dos farmacêuticos portugueses na procura permanente da melhor forma de prestar cuidados de saúde nas suas comunidades alinha com o tema da FIP para o Dia Mundial do Farmacêutico deste ano: "Think Health, Think Pharmacist". Juntos, celebramos o alargamento da vossa prática e do leque de serviços oferecidos, e muito particularmente o papel que desempenharam durante a COVID-19. Dito isto, a FIP incentiva a que continuem a dialogar e a debater com o Governo e o SNS no sentido de se encontrarem soluções público-privadas na entrega de serviços de saúde com cobertura universal através das farmácias comunitárias, e garantir modelos de remuneração sustentáveis, que recompensem o investimento em conhecimento e capacitação, tanto para o Governo como para os farmacêuticos. É igualmente crucial o envolvimento com o órgão regulador nas discussões que dizem respeito ao reconhecimento de especialidades e prática avançada, pois isso é inevitável. O território farmacêutico global está a desenvolver-se rapidamente, seja através da tecnologia, das mudanças na saúde ou do crescente reconhecimento do papel essencial dos farmacêuticos na cobertura universal de cuidados centrados nas pessoas, que vão muito além do papel tradicional. Os jovens farmacêuticos estão a entrar numa profissão cheia de promessas - liderando a otimização de medicamentos, sendo pioneiros na investigação e moldando a educação em saúde. A saúde digital, a inteligência artificial e a medicina de precisão são catalisadoras e estão a impulsionar a profissão. Agora é o momento para os farmacêuticos abraçarem essas oportunidades. Juntos, apelamos à ousadia, para aproveitar as competências diversificadas dos farmacêuticos e redefinir a profissão para um futuro brilhante.